Quem sou eu para dizer o que é racismo?


Cena do videoclipe "Você Não Presta", de Mallu Magalhães

Reflita

Recentemente, a internet foi tomada por uma polêmica sobre o videoclipe da Mallu Magalhães, para a música "Você não presta".  Gravado em Portugal, o trabalho da cantora conta apenas com dançarinos negros, com pouca roupa, besuntados em óleo corporal e dançando freneticamente em grupo, enquanto a Mallu fica em outros ambientes dançando sozinha.
Alguns takes do vídeo levantaram questionamentos,  como "quem seria a pessoa que não presta?". Em uma das vezes em que o refrão era entoado, por exemplo, os dançarinos apareciam atrás de uma grade. Apenas eles, Mallu não. O trabalho de Mallu foi apontado por militantes da causa negra como racismo velado.

Depois de alguns dias, a cantora se retratou por meio do Facebook:

"Fico muito triste em saber que o clipe da música 'Você não presta' possa ter ofendido alguém. É muito decepcionante para mim que isso tenha acontecido. Gostaria de pedir desculpas a essas pessoas. Meu trabalho e minha mensagem têm sempre finalidade e ideais construtivos, nunca, de maneira nenhuma, destrutivos ou agressivos.
A arte é um território muito aberto e passível de diferentes interpretações e, por mais que tentemos expressar com precisão uma ideia, acontece de alguns significados, às vezes, fugirem do nosso controle.
Sei que o racismo ainda é, infelizmente, um problema estrutural e muito presente. Eu também o vejo, o rejeito e o combato."
A íntegra pode ser lida aqui.

Veja

Cartaz de divulgação da série
Cara Gente Branca
A Netflix inseriu em seu catálogo duas séries brilhantes sobre o tema: The Get Down e Dear White People (Cara Gente Branca, em português). Coincidentemente, assisti às duas dias antes do clipe da Mallu chegar à internet.
A primeira fala sobre a vida no Bronx nos anos 1970, no auge da era Disco e na criação do Hip Hop. Como pano de fundo, há uma guerra entre os moradores, em sua maioria negros, o tráfico de drogas e políticos que têm interesse na especulação imobiliária do local. Soa tão atual, não?
Além dos números musicais, edição e fotografia primorosos (é a série mais cara já feita pelo serviço de streaming), o roteiro é apaixonante, poético e necessário. Infelizmente, a série não terá segunda temporada, mas os 11 episódios estão lá na plataforma e valem muito à pena.
A outra série toca ainda mais fundo no tema. Cara Gente Branca se passa em uma universidade que se diz pós-racial, mas que protagoniza diversos episódios de segregação. Sam, a protagonista, é a porta-voz de um dos movimentos negros do centro de ensino, mas se autoquestiona ao se ver apaixonada por homem branco, ou sobre os limites do movimento e o quanto a luta pode escravizá-la. 
A internet também foi palco de acaloradas discussões no ano passado sobre o uso de turbantes por mulheres brancas. Li textos muito interessantes à época, com visões diferentes de pessoas diretamente impactadas pelo tema. Independentemente da posição de quem quer que seja, o que se via muito era a acusação do chamado "racismo reverso". 

Aprenda

Vi muitas pessoas brancas, como eu, levantarem bandeira a favor do vídeo da Mallu, sem ouvir o outro lado, ou atacarem Cara Gente Branca, sem um pingo de autocrítica. Como se eles pudessem dizer o que é racismo, ou não. A história está aí para provar quem sempre esteve do lado opressor da força. 
Como parte da minha pesquisa, conversei com uma grande amiga, que é ativista e sempre foi uma de minhas fontes preferidas sobre o assunto, dada a profundidade de suas análises. 
Apresento-lhes a jornalista Juliana Gonçalves, militante do Movimento Negro. 
Boa leitura!

"O pior racista é aquele que não quer ser"

Juliana Gonçalves, jornalista e militante do Movimento Negro

Você assistiu ao novo clipe da Mallu Magalhães "Você não Presta"? O que achou?
Assim que o clipe começou pensei “ Que legal, não somos cota aqui”, como normalmente é. Há um negro, um asiático, quando muito, um indígena, e o padrão universal de ser humano segue sendo a pessoa branca. Com o passar dos minutos, tudo mudou…empolgação virou incômodo. Achei bem ruim. O clipe traz corpos  negros como se fossem cenário. Me incomodou de imediato aqueles corpos com óleo como objetos da cena e a falta de interação com a cantora. Unindo a imagem com a letra, a coisa piora: “Eu convido todo mundo para a minha festa. Só não convido você porque você não presta”. De que festa ela está falando? Quem não presta? Ou ela convidou todo mundo, inclusive esses negros dançando numa parede sem reboco, mas não chamou o cara que não presta? As pessoas esquecem que o corpo negro é um corpo político, com ele vem uma série de significados. Não estou dizendo que Mallu seja racista. O clipe dela é racista. Lembrando que o pior racista é aquele que não quer ser.

"Aceitar que história é injusta e que há vítimas significa que há algozes, e ninguém quer ser algoz"

Como você se sentiu em relação à série Cara Gente Branca, da Netflix?
Gostei muito, embora eu ache que ela fala muito mais aos negros do que aos brancos, em geral. No fim, talvez sirva para as pessoas brancas verem o mundo como os negros na diáspora o enxergam muitas vezes. E principalmente para dizer que o negro não é a antítese do branco, não precisamos ser, temos nossa história, memórias e desafios. A série fala muito da visão de pessoas da militância, de como não somos um grupo homogêneo. Somos muitos e muito diversos. As pessoas ainda, em sua maioria, enxergam pessoas negras como um grupo muito estereotipado.

Como você se sente ao ver brancos apontando o que é ou não é racismo?
Desrespeitada. Mas ultimamente aprendi a agir com sarcasmo e humor. Acho que como temos a história do mundo contada oficialmente pelo olhar do branco, em algum momento essas pessoas que são privilegiadas se convenceram que suas opiniões importam muito e simplesmente param de ouvir. Porque quando apontamos o racismo em uma situação, a pessoa tende a relativizar, ela para de ouvir o que o outro diz, mesmo o outro tendo a vivência que ele não tem. Aceitar a existência do racismo é aceitar que existem privilégios e ninguém quer perder privilégios. Aceitar que história é injusta e que há vítimas significa que há algozes, e ninguém quer ser algoz.

"Não adianta não ser racista e não desconstruir o racismo"

Você acredita que exista apoio por parte dos brancos à causa negra?
Apoio há. Sensibilização também, mas nada disso desestrutura o racismo da sociedade. Precisamos é que as pessoas se responsabilizem pelo legado racista que ainda estamos cultivando e deixando para as novas gerações. Não adianta não ser racista e não desconstruir o racismo.

Por que o tema apropriação cultural incomoda tanto?
Porque fomos criados sob o mito da democracia racial que naturalizou a apropriação cultural como legado das misturas das raças. Entender que onde não existe igualdade não pode existir mistura, e sim exploração é muito difícil.

"A meritocracia e o mito das oportunidades iguais as raças produziram um tipo de racismo muito perverso no Brasil"

Quais as maiores deficiências de informação tanto de brancos quanto de negros sobre o racismo e o preconceito, na sociedade atual?
Acho que temos informação, aliás, hoje pela internet tá tudo aí, dado. Basta ter oportunidade e não ter preguiça. Mas acredito que a maioria das pessoas acha que racismo é xingar alguém de macaco e não entende que estamos falando de um sistema de opressão refinado, com base histórica, que incutia na cabeça das pessoas que há pessoas de segunda classe, há uma hierarquização de ser humano. O racismo estrutura a nossa sociedade, assim como as relações de opressão advindas do capitalismo.

Esse é um problema apenas do Brasil? 
O racismo com os negros espalhados pelo mundo é recorrente em todos os países. O problema do Brasil é que aqui nunca houve uma segregação  institucional e legal. Nos EUA, por exemplo, o lado “positivo” da segregação é que ela fez com que os negros se juntassem e construíssem suas próprias instituições (bancos, universidades, mídia etc). Por exemplo, aqui diziam “somos todos iguais, as oportunidades estão aí, os negros só precisam correr e alcançá-las”. Assim os negros nunca estiveram dentro das esferas de poder e decisão, mas oficialmente também não estavam fora. A meritocracia e o mito das oportunidades iguais as raças produziram um tipo de racismo muito perverso no Brasil.

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