Um não-texto sobre o Ceará

Voando na duna do por-do-sol, em Canoa Quebrada

Eu poderia escrever um texto enorme e rico em detalhes sobre como Canoa Quebrada é mágica. Eu diria que, durante o dia, as pequenas ruas são adornadas por pousadas e restaurantes charmosos, mas o grande chamariz são a bela praia e as falésias gigantes e coloridas. Que os símbolos locais, a lua e a estrela, estão por toda a parte. Que não é raro esbarrar com sotaques diferentes por lá, uma vez que Canoa foi praticamente colonizada pelos europeus.
Eu poderia escrever em detalhes sobre como, à noite, as mesmas ruas ganham uma luz especial. Que pequenas lamparinas revelam restaurantes charmosos, elegantes e com uma comida deliciosa. Eu poderia falar, também, que só há uma rua de destaque lá, chamada de Broadway, e assim como o nome dá a entender, parece cenário de filme musical.

Mas, não. Não vou falar sobre Canoa Quebrada.


Jericoacara

Eu poderia iniciar o texto falando sobre Jericoacara. O parque natural, que fica no litoral oeste do Ceará, é um dos destinos mais procurados atualmente no Brasil, e cultuado por gringos. Eu poderia falar sobre como a praia praticamente te busca na porta da pousada, pois não há asfalto e a sensação de pé na areia toma todas as cinco ruas principais e diversas vielas de Jeri. Não quero falar também sobre como foi emocionante andar de quadriciclo, subindo e descendo dunas, ou conhecer a Lagoa do Paraíso, com as redes na água. Nem vou me alongar sobre como a culinária de lá é fantástica, ou sobre a aventura que é chegar à Pedra Furada - uma verdadeira trilha, escalando pedras -, o principal ponto turístico de lá.

Jeri nem é tudo isso.

Eu poderia falar sobre como sempre estive errado em relação à Ivete Sangalo. Assistimos o show dela no réveillon e eu calei a minha própria boca de alguns anos atrás. A mulher é a maior artista do Brasil, sem dúvida. Três horas e meia em cima do palco, sem parar nenhuma vez. Meu primeiro grande show de 2017. Mas não vou falar sobre ele. Não quero.

Eu adoraria me alongar e falar sobre como Fortaleza é uma cidade linda. Não só pelas praias, mas também pelo valor histórico. O que são as "barracas de praia" da Praia do Futuro? Como as pessoas têm coragem de dar esse nome àquelas estruturas que eu nunca vi na vida, com piscinas, mesas, massagens, música ao vivo etc? E o pôr do sol em Iracema? O forró do Pirata Bar, o chopp de vinho do Bixiga, a arquitetura do Dragão do Mar? Tudo lindo, imperdível e inesquecível.

Eu poderia falar sobre o show de humor do Lúpus Bier. Esse sim é bem ruim. Ruim de verdade. Desvie a rota, vá beber no Chopp do Bixiga.

Mas quero falar mesmo é das pessoas. Cruzar o Brasil pode nos dar a impressão de sair do País, uma vez que são costumes tão diferentes, gírias completamente desconhecidas, palavras que nunca ouvimos e reações inesperadas. O Ceará é terra da luz, da magia e também da alegria, o título não pertence só à Bahia. Dois personagens vão ficar gravados para sempre em minha memória.



O Ceará foi o primeiro estado a abolir a escravidão, em 1883. Por essa razão, ficou conhecido como Terra da Luz. A proclamação foi realizada em um prédio imponente, no centro da cidade, que hoje abriga o próprio Museu do Ceará. Uma das salas do prédio conta essa história de forma metalinguística: um quadro com a ilustração do ato e, à frente, a mesa que foi utilizada.
No espaço, há um livro com o primeiro nome de pessoas que foram escravizadas e características, como cor da pele e "habilidades" identificadas pelos senhores de escravos. Enquanto eu observava a peça histórica, fui abordado pelo segurança do local, Targino.
- Aí deve ter o nome de bisavós ou tataravós meus, mas nunca vou saber.
- Pois é, só registravam o primeiro nome das pessoas. Fica difícil identificar alguém.
- Olha aqui, tem umas correntes que eles usavam nas pessoas.
- Que coisa mais triste.
- É... Era muito sofrimento... Você leu aqui? - ele me apontou um comunicado de um senhor de escravos que procurava pelo homem que conseguiu fugir e oferecia uma boa recompensa.
- Vi sim. Eram tratados como objetos.
Targino, animado, me levou a outra sala.
- Olha aqui, tem toda a roupa do padre Ciço. Aquela espingarda ali era dele. Esse padre aí era porreta.
O vigia disse ter ficado animado com nossa presença no museu, que não é exatamente um dos pontos mais visitados de Fortaleza. Ele nos mostrou mais algumas obras, sob seu olhar, e se foi quando precisou cobrir a colega na recepção.
Naquele dia eu conheci a história do Ceará sob a ótica de quem a vive, e a viveu em gerações passadas. Que convive todos os dias com aquelas peças e é capaz de ouvir os próprios passos no assoalho, dada a imensidão no espaço e o vazio dos corredores. Targino despediu-se de nós com um sorriso tão sincero, raro de se ver por aí.

Camila estava sorridente quando chegamos. Ela parecia sinceramente feliz, apesar de trabalhar na noite de réveillon. Ela nos recebeu e se colocou à disposição para nos atender no que fosse preciso. E não era conversa fiada, ela foi muito prestativa e sempre com um sorriso enorme e iluminado no rosto.
Após a meia-noite, quando todos confraternizaram, nós a abraçamos e lhe desejamos um feliz ano novo. Ela, com o sorriso a que já estávamos acostumados, disse que o ano certamente seria bom, pois já começará com sua formatura em assistência social, nos primeiros meses. Esse vai ser o ano da Camila! Está na cara.


O primeiro pôr do sol do ano, na praia de Iracema, em Fortaleza

Este não é um texto sobre o Ceará. É uma declaração de amor.<3 p="">


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