Durante os meus primeiros anos de vida, minha família era bem humilde e não tinha condições de comprar um videocassete. Eu sempre assistia aos desenhos da Disney na casa dos primos. Sendo assim, não desperdiçava uma oportunidade sequer de reparar em cada detalhe, afinal não sabia quando teria a chance de ver novamente. Aquelas fitas cassete verdes, que precisavam ser rebobinadas após o uso, aparentavam ter tanta magia dentro.
Tenho um fragmento de memória bem vivo da minha infância, relacionado à Cinderela, da Disney. Estava junto com todos meus primos, na sala dos meus tios. Na cena em que ela e o príncipe dançam, ao som de "Isso é amor", a sombra do castelo cobre o rosto dos personagens. Meu tio passou pela sala nesse momento e comentou com meu pai: "Olha só, já estão até fazendo esses bonequinhos pretos".
Eu estranhei muito aquele comentário. Tanto que fico com ele martelando na minha cabeça até hoje, mais de vinte anos depois. Qual seria o problema de a Cinderela ser negra, como várias de minhas amigas da escola? Hoje, olhando para trás, percebo o quanto a inocência de uma criança jamais seria capaz de alcançar, sozinha, todas as formas de preconceito criadas por nós, adultos.
Essa história me veio à mente após assistir à montagem de Cinderela, do Grupo Gattu, o clássico conto de fadas que tirou a Disney da quase falência, em 1950, e atravessou gerações. A versão escrita por Eloisa Vitz é ambientada no Brasil, com uma Cinderela negra.
Essa não é a primeira vez que vejo uma Cinderela diferente da que foi eternizada pela Disney. A cantora americana Brandy já havia cumprido esse papel, no filme A Cinderella (1997), com ninguém menos do que Whitney Houston como sua fada madrinha.
A Cinderela de Eloisa tem todos os elementos de um bom conto de fadas: madrasta malvada, amigos animais, fadas madrinhas, príncipe encantado e muita música. As crianças ficam enfeitiçadas pela história, assim como os pais, que a conhecem de cor. Nem preciso falar dos "disnéfilos".
Essa Cinderela poderia ser interpretada por atrizes de etnias diversas. O papel da menina que sonha com um vestido para ir ao baile transcende a cor da pele, ou do cabelo, e foi escrito para uma excelente atriz, que soubesse transportar o público para uma das histórias mais conhecidas do mundo, como se estivesse sendo contada pela primeira vez. E Miriam Jardim cumpre esse papel maravilhosamente. É a Cinderela. Ponto.
Recomendo muito que todos corram para assistir. O elenco é impecável, os figurinos são lindos, a solução encontrada para o momento ápice da história (sem spoilers, vai que alguém não sabe a história) e não é sempre que vemos um conto de fadas ter vida, assim, na nossa frente.
Na minha infância eu não tinha videocassete ou filmes da Disney, mas tinha uma imaginação e tanto. Permita-se isso.
Ah, a peça é gratuita e vai até o fim do ano. Veja mais informações na página do Grupo
.
Comentários
Postar um comentário