Quando minha mãe entrou na sala
de casa, escondendo algo atrás de si com as mãos, eu estava sentado no sofá
assistindo ao Chaves. O ano era 1990, eu tinha 4 anos, lembro que o episódio se
passava na escola e o professor Girafales fazia uma pergunta para os alunos que,
para variar, não tinham resposta.
Minha mãe tinha um grande sorriso
no rosto e anunciava ter uma surpresa para mim. “Será que é uma revistinha?”,
pensei. Nem sabia ler e adorava ganhar gibis da Xuxa e da Turma da Mônica. Em
ambientes públicos eu costumava esticar o pescoço e “ler” a historinha junto
com outras pessoas. Uma vergonha.
Ela tirou um saquinho vermelho do esconderijo e anunciou: “Te matriculei na escolinha”. Aquilo foi um
choque. Eu sempre quisera ir para a escola, mas não naquele contexto. Não
queria ir para um lugar onde o professor perguntaria algo e eu não saberia o
que responder. “Eu não quero”. “Mas, filho, você sempre quis ir para a
escolinha”. Ela deve ter percebido que eu olhei para a televisão e emendou.
“Você sempre sabe responder as perguntas do professor Girafales”.
Aquilo não deve ter me convencido,
mas não lembro o que aconteceu dali em diante. A próxima memória que tenho é de
estar com o saco vermelho pendurado nas costas, agarrado a minha mãe e chorando
loucamente em frente ao portão da escola, enquanto outra mãe apontava para mim
dizendo para seu filho que eu "não estava chorando”. Isso fez com que eu
enxugasse as lágrimas para mostrar à criança que estava tudo bem.
Um ano de fantasmas do passado – sem nenhuma referência a campanhas políticas – que me assombraram ou trouxeram respostas para perguntas que eu jamais formularia sozinho.
Não sei que raios aquela mulher
fez. Psicologia reversa, talvez? Eu sei que funciona até hoje. Mesmo que eu
esteja morrendo de dor, mantenho um sorriso amarelo no rosto e fujo à francesa
no meio do almoço de Natal para um hospital. É mais importante que o outro
encontre força em mim, mesmo que ela não exista e eu a invente.
Essas foram algumas das memórias
que vieram à minha mente em 2014, a primeira, mais precisamente, pela
repercutida morte do Roberto Bolaños. Um ano de fantasmas do passado – sem
nenhuma referência a campanhas políticas – que me assombraram ou trouxeram
respostas para perguntas que eu jamais formularia sozinho.
Nos últimos meses, inclusive, tenho
andado com meus dados entrelaçados a uma lembrança do passado que se tornou a
resposta para várias perguntas que vão se abrindo no meu caminho. Perguntas que
eu nem sabia que existiam, precisava de outros olhos para enxergá-las.
Na ceia de Natal deste ano quem
levou o CD da Simone fui eu. Já temos cadeiras vazias demais para nos
desapegarmos de tradições que nos deixam perto de quem amamos, mesmo que isso
implique no mesmo sotaque baiano entoando “Jésus Cristo, eu estou aqui”, porque
minha família nunca deixou “Então é Natal” no repeat, como as Lojas Americanas. Até a versão duvidosa de What a Wonderful World (Que maravilha viver) torna-se um primor
natalino que merece fazer parte da celebração.
Já temos cadeiras vazias demais para nos desapegarmos de tradições que nos deixam perto de quem amamos
A reunião familiar é sagrada e é um
dos ingredientes que ajudam a manter os nossos fantasmas vivos. As lembranças
embutidas nos pratos, nas sobremesas, nas orações e no semblante de cada um,
que não verbaliza, mas deixa os sentimentos, as faltas e carências transparentes
em pequenas atitudes, dão vida àqueles que estão lá, de alguma forma.
Antigamente, nosso Natal
costumava ser a melhor reunião familiar do ano, pelo menos para as crianças. Um
dos tios sempre tinha a função de se vestir de papai noel e distribuir os
presentes comprados por toda a família para cada um dos rebentos presentes. E
eram muitos. Nunca soube como funcionava o critério de escolha de ser o bom
velhinho. Nem sei se era mesmo uma honra, tendo em vista o calor de dezembro e
as roupas quentes. Talvez eles fizessem uma aposta de adultos entre si e quem
perdesse teria que pagar a prenda.
Com o tempo a roupa vermelha foi
aposentada, as crianças cresceram, ainda não fizeram novos bebês e agora
celebramos o Natal com algumas cadeiras vazias. Inserimos uma ou outra
brincadeira ou dinâmica para tentar deixar o ambiente mais leve. Mas não tão
leve como um fantasma. A reunião é obrigatória, sempre vai acontecer. Até que
restem duas cadeiras ocupadas, pelo menos.
E aí chega o dia 26 de dezembro.
O dia em que acordamos da magia do Natal. Que os fantasmas voltam de onde
vieram, as músicas de Natal se calam e nos damos conta que ainda temos cinco
dias de 2014 com uma árvore enfeitada no meio da sala. E nesse período o que se
deseja? Feliz pós-Natal?
Hora de esvaziar as gavetas. Ou
até de se livrar de algumas gavetas, na verdade. Feliz gavetas novas em 2015!
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