Revivendo a morte

Não conheci outro Jeremias em toda minha vida, a não ser meu pai. Lembrei disso quando o coveiro achou curioso o nome escrito no plástico azul. Apesar de ser grafado como o da bíblia, com J, era comum errarem e escreverem com G. Ele nunca ligou. Na pedra do túmulo também está com G. E sei que ele não se importaria.
Meu pai era uma pessoa simples e não gostava de demonstrar fraqueza, além de proteger as pessoas mais do que a si mesmo.  Tinha perfil conciliador e sempre se prestava a consolar os outros, mesmo quando precisava ser consolado. Preferia enfrentar atividades ingratas sozinho, sem testemunhas. Foi assim na exumação da minha mãe. Foi assim que fiz na dele, proibindo minha irmã de me acompanhar.
Exumação é o ato de retirar da cova os restos mortais após dois (crianças até seis anos) ou três anos do sepultamento e redirecioná-los para as gavetas ou cremação. De acordo com o Serviço Funerário do Município de São Paulo, cerca de 250 pessoas morrem diariamente na capital. Os 22 cemitérios municipais realizam 52 exumações por dia e naquele dia 18 de setembro de 2014, eu participava de uma delas.
Enquanto aguardava na fila com o papel da funerária em mãos, fui logo avisado por uma senhora com aquele ar e pompa da experiência, que acabara de passar pelo que eu logo veria: “é como reviver o enterro, se prepare”. Entrei em pânico interno, mas me limitei a assentir e torcer os lábios em sinal de compreensão.

Dificilmente via lágrimas escorrendo de seus olhos castanhos que ficavam esverdeados sob a luz do sol. Lembrei disso quando enxuguei as minhas que escapavam da área segura dos óculos escuros naquela manhã

Meu pai não podia ver alguém trabalhando de forma braçal que já oferecia ajuda, mesmo com seu problema crônico na coluna. Lembrei disso quando, na minha inquietação, senti um ímpeto de querer ajudar o coveiro a fazer o seu trabalho e terminar logo com aquilo, mas reuni o autocontrole e decidi ficar onde estava. Aquilo parecia interminável e eu só via terra e mais terra saindo.
Se algo é soberano entre tudo que existe, é o tempo. Pedaços de caixão e panos rasgados eram resgatados no ato provando que nada do que fora guardado com meu pai havia sobrado. De repente Anderson, o coveiro, para, olha para o fundo do buraco que abriu com sua enxada, vira-se para mim e pede o saco azul, que eu segurava fingindo não saber o que era. Saca um par de luvas verdes do bolso e inicia o resgate pelo qual eu nada ansiosamente aguardava.
Já li e vi diversos filmes sobre a morte e o período de luto. O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, fala sobre a superação após a autora perder o marido e a filha, li no ano em que meu pai faleceu.  Pouco tempo depois descobri O Ano da Leitura Mágica, de Nina Sankovitch, que aborda o mesmo tema, sob outro prisma.
Até mesmo a comédia romântica, que de comédia só tem o gênero enquadrado mesmo, P.S. Eu te Amo, me ajudou a compreender a importância do luto para seguir a vida. A morte faz parte da vida. A obra foi inspirada no romance de Cecelia Ahern, mas adotou outra narrativa na versão cinematográfica, diferenciando significativamente as duas peças. A jornalista Eliane Brum também fez uma série de reportagens sobre a morte durante sua estadia na revista Época. Em referências recentes, o filme Uma Nova Chance Para Amar, que está nos cinemas e traz Robin Williams no elenco, fala sobre os prejuízos de um luto mal vivido e a dificuldade para encarar a morte, querendo reviver momentos que se foram com a pessoa falecida. Para a morte talvez eu tenha encontrado subsídios para compreender e viver melhor, mas não encontrei nada que me prepara-se para reviver a morte.
Dificilmente esquecerei o sentimento que tive ao ver o primeiro osso ser retirado da cova. Dali em diante não parou mais. E eu não reconhecia o meu pai. Só conseguia lembrar a frase “não somos nada”, comum em enterros, mas que agora eu descobria que soa fora de contexto. Até o enterro ainda somos algo: somos o que fomos para cada uma das pessoas ali presentes. Sim, nossa matéria se torna nada, é tragada pela terra impiedosamente, mas só percebemos isso quando exumamos o que era um corpo. Pedaços de roupas velhas e rasgadas se tornaram sacos de ossos que eram recolhidos e depositados no saco azul, sem se importar com ordem. A estrutura óssea não se aplica ao martírio da exumação.
A cada osso que Anderson retirava, menos eu via meu pai. Aquilo não era o Jeremias. Novamente senti um ímpeto de pedir para ele parar com tudo e jogar aquilo fora. Mas me contive.
Meu pai sempre foi uma pessoa alta. Em gincanas da igreja, quando uma das prendas exigia trazer a pessoa mais alta que conhecêssemos, meus amigos e minha mãe, que era catequista, sempre apostavam no meu pai e quase sempre era difícil achar alguém mais comprido. Lembrei disso ao ver o esforço de Anderson ao depositar cada parte do que tinha sido meu pai no saco azul. Ele quase nunca cabia nos lugares em vida. E quase não coube três anos depois a morte.

Assenti e compreendi que passamos a vida divididos em grupos pré-determinados por alguém, seja na turma da escola, ou na equipe do trabalho, e quando morremos passamos a fazer parte da galera que morreu em 2011, e jamais poderemos mudar de grupo

Meu pai não chorava em público. Dificilmente via lágrimas escorrendo de seus olhos castanhos que ficavam esverdeados sob a luz do sol. Lembrei disso quando enxuguei as minhas que escapavam da área segura dos óculos escuros naquela manhã.
Não sei se meus pais gostariam de manter a união depois da morte, mas arrisquei. Perguntei ao coveiro se seria possível reunir o saco azul de meu pai ao saco azul de minha mãe, falecida há 14 anos. “Não dá. Nós separamos por ano de morte, e depois por ano de exumação. Senão perde o controle lá na administração. Já tem uma ala para os que morreram em 2011”. Assenti e compreendi que passamos a vida divididos em grupos pré-determinados por alguém, seja na turma da escola, ou na equipe do trabalho, e quando morremos passamos a fazer parte da galera que morreu em 2011, e jamais poderemos mudar de grupo.
Enquanto o coveiro devolvia a terra para o buraco, olhei para o lado e vi um casal que formava a turma das exumações de 2014 junto comigo. A mulher vestia uma camiseta com a foto do filho, ainda criança, e que era objeto do triste ato nesse momento. Ela se aproximou de mim. “Oh, meu Deus. Você veio sozinho?”. Ao descobrir que o falecido era meu pai, e que na verdade eu também já havia perdido a mãe, ela começa a chorar e me olhar com pena. Fazia tempo que eu não era vítima daquele olhar. Acredito que ela tenha vindo buscar forças em mim para suportar a própria dor que começaria em instantes. Quando deu as costas, após minha incapacidade de consolá-la, eu lembrei que meu pai apequenava os próprios problemas para ajudar os outros e a chamei. “Posso te dar um abraço?”.
Vai ser difícil esquecer a imagem da mãe agarrando o seu pequeno saco azul, vindo na minha direção e de Anderson, porque o seu filho ficaria na mesma ala de gavetas do meu pai. Ao ver a foto na lápide do “Geremias”, em meio a lágrimas, ela elogiou a sua beleza. Eu pensei em dizer que aquela foto fora feita na minha formatura, e que foi uma noite especial, mas não quis deixar o momento mais dramático do que já era. Poupei a ela e a mim.
“Não esqueça que as gavetas funcionam como um aluguel. Você paga uma taxa de R$ 48 hoje e tem que lembrar de no dia 18 de setembro de 2019 pagar novamente”, avisou Anderson. Eu não sei o que estarei fazendo em 2019, mas certamente nada que me faça esquecer esse dia.
Sai daquele lugar com a certeza de que a morte faz parte da vida, e não o contrário. Temos que saber viver e também saber morrer. Todas as nossas diferenças em vida minguam no momento da morte e desaparecem por completo na exumação, quando viramos apenas um amontoado de ossos dentro de um saco azul cimentado à parede de um cemitério municipal e com contrato de aluguel renovado a cada cinco anos.
Meu pai não era de faltar ao trabalho por nada, nem por doença. Lembrei disso quando peguei o ônibus rumo à redação.

Comentários

  1. Quando soube que iria continuar o blog eu sabia que iria ler. Pois sabia quem escreveria.
    Consigo em minha cabeça imaginar toda a sequência de atos. Os sorrisos e as lágrimas em câmera lenta. E até sentir um vento suave e morno que faz girar folhas secas no chão. A leitura quando é boa faz o leitor inventar seu próprio mundo.
    Franqueza, docilidade e coragem. Coragem que eu jamais teria. Por isso ainda mais admirável. Dessa forma, nós humanos nos conectamos. Podemos nos conscientizar de nossa humanidade e optar por ela.
    Ao fim, só posso dizer obrigada.
    E continue a escrever.

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