“...Como o João há mais de mil”

Há muito tempo eu vinha ensaiando um retorno a este blog. Se verificar a data da última postagem, verá que realmente faz 21 longos meses que não teço uma frase por aqui. Devo confessar que além de Carrie Bradshaw - minha colunista favorita ever - minha inspiração para desenhar o cotidiano em palavras veio de outra diva literária, a quem devo muito de minha formação e inspiração: Eliane Brum. Seu livro “A Menina Quebrada e outras colunas” reúne uma coletânea de textos publicados no site da Revista Época até o início de 2013. Terminei a leitura semana passada e mentalizei imediatamente: preciso fazer isso!
A segunda inquietação que me aquietou em frente a um computador foi a necessidade de relatar o que vi e participei no último sábado. O ato em memória a João Antônio Donati e pela criminalização da homofobia aconteceu no Largo do Arouche, o qual visitei um sem número de vezes em busca de lazer e ontem voltei, mas procurando justiça. Como disse o organizador do evento, Helcio Beuclair, aquele lugar que é conhecido por ser o mais “gay” da cidade deveria se transformar também em um lugar político. O seu grito pelas redes sociais ecoou e conseguiu reunir, segundo os responsáveis, cerca de mil pessoas na praça. “As bi, as gays, as travas e as ‘sapatão’, tudo organizadas pra fazer revolução” era um dos gritos entoados.
João Antônio Donati era um rapaz de 18 anos que foi encontrado morto em Goiás na última semana, em um terreno baldio e com um saco plástico na boca, revelando asfixia. As primeiras notícias davam conta de que um papel com a escrita “vamos eliminar essa praga” foi encontrado na boca de João. As notícias subsequentes desmentiram isso. Poucos dias depois, o “culpado” se entregou à polícia afirmando que manteve relações com a vítima, não era homossexual e o matou após uma briga. Conclusão da polícia: crime passional. Tão passional quanto o do jovem Caíque, que teria se suicidado no centro de São Paulo, segundo boletim também da polícia. Quem é do meio sempre enxerga que a homofobia está em cada caso desses. Essa praga permeia nossos dias e às vezes nem percebemos, achamos normal. Achamos estatística. De acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), 312 homossexuais, travestis, lésbicas e transexuais brasileiros foram assassinados, vítimas de homofobia e transfobia. A média é de um gay a cada 28 horas.

De acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), 312 homossexuais, travestis, lésbicas e transexuais brasileiros foram assassinados, vítimas de homofobia e transfobia. A média é de um gay a cada 28 horas

Como já é de costume, junto às bandeiras coloridas do movimento LGBT misturavam-se no ato bandeiras de partidos políticos de esquerda que apoiam as causas em seus Programas de Governo e aproveitam o movimento de fragilidade para despertar o conhecimento da população. Eduardo Jorge, candidato à presidência pelo PV, foi o único postulante ao Palácio do Planalto a comparecer e discursar.
Diante de falas emocionadas, como a das Mães Pela Igualdade e das Transexuais, capitaneadas por Renata Peron, que coincidentemente dividiu há pouco tempo sua própria história de vítima de transfobia em um vídeo do grupo Põe na Roda, falaram sobre o que é viver sob o risco da faca do ódio alheio. "Nós como mães não podemos permitir esse discurso infernal de ódio, porque isso não é de Deus. Não vamos deixar que se mate impunemente mais nenhum João, nenhuma Tiffany, nenhuma Maria", bradava a representante do Mães pela Igualdade, arrancando aplausos e lágrimas dos presentes. Tiffany era uma transexual assassinada na última semana e Maria Lucineide, uma mulher homossexual, mas escondidas dos holofotes, como tantas outras. “Atrás de silicone também bate um coração”, foi uma das frases entoadas durante o ato.

"Não vamos deixar que se mate impunemente mais nenhum João, nenhuma Tiffany, nenhuma Maria"

Alguns porta-vozes adotaram o discurso de lutar contra os fundamentalistas religiosos e perseguição por parte da igreja. É assustador como, em pleno século XXI, palavras tão comuns aos livros de história que retratam a Idade Média ou a perseguição francesa aos ciganos, reforçada por Nicolas Sarkozy, ainda ganham vida.
A referência aos religiosos era direcionada ao pastor Silas Malafaia, que apesar de não ter cargo público usa sua influência para barrar importantes projetos caros à comunidade LGBT, como o casamento igualitário, o próprio PLC 122, que propõe a criminalização da homofobia e a lei de identidade de gênero. Uma das últimas provas da influência do religioso foi a alteração no Programa de Governo divulgado pela candidata Marina Silva (PSB) no dia 29 de agosto, contemplando todas as reivindicações citadas acima e sendo alterado drasticamente menos de um dia depois. Como quantificou a candidata Luciana Genro (PSOL), “não durou nem 24 horas e quatro tuites do Malafaia”. A presidente Dilma Rousseff foi bastante criticada no ato de sábado e até acusada de estar ao lado de políticos contrários à causa, como Marco Feliciano (PSC) que teve a infelicidade de propor o projeto da Cura Gay enquanto presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Seu infortúnio também foi lembrado na ocasião.
Três dias após a gafe de Marina, Dilma se comprometeu com a criminalização da homofobia e questionada em outros momentos porque não o fez em seu primeiro mandato, explicou que “havia pontos a serem revistos”. Ressabiada com a mudança de postura repentina da candidata, a comunidade também criticou este ato falho.
Empunhando velas, como em uma procissão religiosa, caixas de som, baterias, microfones e faixas, o grupo seguiu o trajeto pela Rua Vieira de Carvalho, entornada de bares LGBT, seguiu pela Rua Augusta, aonde fez uma parada para criticar um estabelecimento que demitiu um homossexual por sua condição e continuou até o prédio da Presidência da República, na Avenida Paulista.

Quando chegamos ao destino, sentamos em duas faixas do maior centro econômico do País enquanto ouvíamos os porta-vozes e bradávamos gritos de justiça. Como jornalista, eu optei por participar como cidadão. Não perguntei nada a ninguém e mal conversei com as pessoas, apenas observei. Observei a família que chegava com as crianças ainda no Largo do Arouche e só resolveu participar do ato ao se certificarem de que “era seguro”. Observei o casal de idosos heterossexuais sentados ao meu lado que se emocionavam a cada depoimento embasbacado. Observei o apoio das pessoas que passavam pela manifestação e contribuíram com buzinaços de solidariedade, ao invés de reclamar do trânsito. Observei os policiais que nos “mandaram” ocupar apenas uma faixa e terminar o ato o quanto antes, em um claro descumprimento da Constituição. Observei que não estava sozinho e que o grito, ali, não era contra a LGBTfobia apenas e sim pela vida. As pessoas não querem mais ser inferiorizadas, agredidas gratuitamente, menosprezadas por sua condição ou tratadas de forma diferente do restante da população. Suspirei e enxerguei vida quando tive a oportunidade de abraçar uma transexual e dizer em seu ouvido: “estamos juntos”. Somos uma única dor. 

ATUALIZAÇÃO: No evento foi divulgado o projeto #VoteLGBT. No site estão tabelados todos os candidatos com propostas coerentes com a nossa realidade. Vale o clique :)

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