De sobra a banquete

O brasileiro produz muito mais do que precisa para se alimentar, porém muitos não têm acesso ao básico. Com base nessa afirmação, pessoas e empresas dispõem-se a destinar alimentos, que seriam desperdiçados, às mesas de diversas instituições diariamente
Uma fatia de melancia simboliza um enorme sorriso, moldurado em um grande carro branco, e adentra as ruas do bairro Jardim Pery Novo, na zona norte da capital paulistana. As 129 crianças e adolescentes assistidos pelo Centro da Criança e do Adolescente (CCA) São Francisco das Chagas fazem de sua refeição os alimentos que foram dispensados pelas classes mais abastadas. Maria Marlene Rodrigues de Andrade trabalha no local há 20 anos e ainda se lembra de quando, no fim da década passada, credenciou o CCA para ser beneficiado pela organização não governamental (ONG) Banco de Alimentos. “Foi graças ao Frei Ricardo, ex-pároco daqui. Ele tinha contato com outras igrejas e ficou sabendo, através de outro padre. Daí, fizemos o credenciamento no SESC.” O principal trabalho da Banco de Alimentos é receber produtos que seriam jogados no lixo, desde que estejam próprios para o consumo, e direcionar às pessoas que não têm condições de comprá-los. A ONG atua somente na capital paulistana, porém com uma grande abrangência. Hoje, são mais de 22 mil pessoas alimentadas graças ao trabalho iniciado timidamente em 1999.
Em uma segunda-feira de manhã, Isabel Marçal, coordenadora de operações e assessora da presidência da Banco de Alimentos, nos recebe para uma entrevista na sede da ONG, localizada no Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Antes de iniciarmos, alguns livros da ONG passeiam pelas nossas mãos e alguns trechos prendem a nossa atenção, como o do Atlas do Meio Ambiente do Brasil, de 1994, que responsabiliza o crescimento populacional pela fome no mundo, contradizendo o que pesquisamos previamente no site da Banco de Alimentos. A ONG mostra, com dados precisos, que o Brasil produz 25% a mais do necessário para alimentar toda a população. Fechamos os livros imediatamente, para que aquelas informações não influenciassem a entrevista que estava prestes a começar.
Após apresentar todo o espaço da ONG, que contempla uma cozinha experimental, chamada de “Cozinha Show” e um auditório para palestras, Isabel nos leva para uma sala de reuniões, onde acontece a entrevista. Em dez anos de funcionamento, o número de doações da ONG aumentou seis vezes, passando de 100 mil a 600 mil quilos. Isabel atribui esse resultado à credibilidade conquistada pela ONG e ao árduo trabalho feito para conscientização das pessoas. “É um trabalho bem de formiga. De mostrar a efetividade dele. Nesses dez anos, as pessoas foram conhecendo e também sabendo que poderiam doar.” Além de fazer o trabalho de recolher e entregar os alimentos, a ONG promove palestras de conscientização para a sociedade. Um dos projetos em andamento, inclusive, consiste em levar às escolas públicas e particulares oficinas culinárias que envolvam as partes de alimentos desprezadas pela grande maioria das pessoas, como cascas, folhas, talos e sementes.
O CCA São Francisco das Chagas não é o único beneficiado pela ONG. Junto a ele, existe uma lista com mais 50 instituições atendidas, tendo como público principal as crianças, mas não somente elas. “O perfil é bem heterogêneo, eu diria. A gente vai desde creches até asilos, casas de apoio, albergues, hospitais. Temos uma igreja, que também faz um trabalho com a população”, diz Isabel. As principais condições exigidas para que a instituição possa ser beneficiada pela ONG é que a refeição seja feita no local e que preste algum outro atendimento às pessoas, além da doação de alimentos. “A instituição tem que fazer um trabalho com essa população atendida. Um albergue, por exemplo, onde a pessoa só vai lá dormir, comer e tomar banho não é elegível. Ela tem que ter algum curso profissionalizante. Uma creche, também, não pode só ficar com as crianças dormindo”, reforça a coordenadora da ONG.
Nesses critérios, o CCA de Maria Marlene se enquadra. As crianças e adolescentes, que se dividem em dois turnos, frequentam a instituição para aprender algo além da escola e não ficar pelas ruas. Marlene acredita que muitas vão para lá por falta de amor e atenção em casa, mas não hesita em dizer que as únicas refeições de muitas acontecem na escola e na instituição. Para participar da CCA, a família tem de ter uma renda total de zero a três salários mínimos e inscrever-se. Após visitas, são analisadas e selecionadas as mais necessitadas. Hoje, 50% do rendimento do CCA vêm da prefeitura e os outros 50% são oriundos de doações.
O campeão do desperdício e da boa ação
Um dos campeões de desperdício em São Paulo, devido à alta circulação de alimentos horti-fruti, é a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP). Por venderem em atacado, os permissionários (atacadistas) descartam caixas inteiras de alimentos apenas por alguns que não estão em condições de consumo. Desde 2003, a CEAGESP, percebendo essa necessidade, montou o seu próprio banco de alimentos, onde são distribuídos, em média, 121 toneladas de produtos por mês, segundo a assessoria de imprensa da CEAGESP. Em nível estadual, essa quantidade sobe para 320 toneladas de alimentos por mês.
Os alimentos que não estão em condições de venda, mas podem ser consumidos, são doados primeiramente pelos permissionários ao banco da CEAGESP e posteriormente distribuídos à ONG Banco de Alimentos e mais de 100 entidades da capital cadastradas. Entre os principais produtos doados estão mamão, manga, mexerica, cenoura, tomate, abobrinha, brócolis, couve e acelga
Em outubro do ano passado, a CEAGESP promoveu a Olimpíada da Solidariedade, baseada nos Jogos Olímpicos de Pequim. Em apenas nove dias, foram arrecadadas 41,5 toneladas de alimentos. Os funcionários e permissionários que mais doaram foram reconhecidos com medalhas de ouro, prata e bronze, de acordo com suas classificações. Mesmo sendo uma competição, todos os participantes ganharam o direito de assinar a bandeira do Brasil que foi enviada à seleção feminina de futebol em Pequim.
As consequências do bem
Uma das maiores razões que bloqueiam as doações, segundo Isabel, é a insegurança do doador quanto a um possível mal-estar do beneficiado. A lei atual rege que se um estabelecimento doa um alimento a uma pessoa e esta adquire algum problema de saúde devido à ingestão o produto, o doador deve arcar com altas multas e indenizações. Quanto aos alimentos recebidos pela Banco de Alimentos, Isabel diz que esse é um problema presente, porém vem sendo combatido. “Muitas pessoas tinham medo de doar, porque não têm o respaldo de uma legislação que os exima da responsabilidade. Ao poucos foram vendo que nós, da Banco de Alimentos, fazemos um trabalho sério e pegamos a responsabilidade para nós. Também fazemos uma triagem dos alimentos, alguns que a gente não pega, outros a gente pega”.
Por essa razão, hotéis, restaurantes, mercados e estabelecimentos em geral, como o restaurante Max Juras, na zona norte de São Paulo, próximo à Rodoviária do Tietê, preferem jogar as sobras fora a correr o risco de arcar com multas. O funcionário Sebastião Resende, que trabalha há cinco anos no local, diz que a produção diária no horário do almoço é de 100 a 300 pratos e que a sobra é aproveitada para a produção de pratos comerciais à noite, ao preço de R$ 8,00. No final do dia, chega-se a 5% de sobra, que em sua maioria é destinada ao lixo. “Vez ou outra esse alimento é doado a algum morador de rua já conhecido por nós. Não são doados a todos que pedem, pois se porventura algum deles passar mal, o restaurante responde por isso”, afirma.
A solução para casos como o de Sebastião, que é um doador impedido pelo receio das multas, é a lei do Bom Samaritano, baseada na parábola bíblica do único homem que ajuda um estranho sem investigar sua origem. A lei está em tramitação no senado desde 1997, na época do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). O projeto desenvolvido pelo Serviço Social do Comércio (SESC), frente à necessidade de combater a fome e o desperdício, propõe que o doador de boa fé comprovada seja imune à responsabilidade nos casos de doar um produto e este provocar algum mal-estar ao beneficiado. Além desta condição, a lei do Bom Samaritano tem em seus artigos trechos que beneficiam o doador com a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços (ICMS) sobre os alimentos doados.
Nos programas de conscientização da Banco de Alimentos, constam informações sobre esse projeto de lei e abaixo-assinados que visam acelerar a sua aprovação. “Nós promovemos no nosso site a consciência das pessoas em relação ao estatuto do bom samaritano, que é uma legislação que já está parada no Senado desde 1997. Levantamos um abaixo assinado com relação a essa lei, e acho que a própria atuação da ONG de conscientização das pessoas leva a isso.”
A rotina do desperdício
Questionada sobre as formas de desperdício no dia a dia, Isabel diz: “Acredito que a primeira é não utilizar cascas, folhas, talos e sementes. Isso é uma questão cultural, a gente acaba desperdiçando, ou nem tendo conhecimento de como realizar pratos com essas partes do alimento”. Em enquete realizada com 14 pessoas responsáveis pelas compras e pela despensa de casa, na cidade de São Paulo, com idades variadas entre 25 e 50 anos, 71% comprovam a tese de Isabel e não agregam essas partes do alimento à sua refeição alegando falta de costume.
Outra forma de desperdício muito comum, segundo a coordenadora, é não fazer o planejamento das compras do mês com base no consumo diário. As pessoas costumam ir ao mercado e comprar o que está faltando, sem planejar se tudo aquilo realmente será consumido. Essa vertente talvez já esteja sendo combatida, de acordo com as pessoas entrevistadas, já que 64% delas garantem programarem-se para as compras e apenas 43% diz que suas contas falharam e deixam sobrar alimentos sem sequer abri-los.
Para reverter este problema e ajudar trabalhos como o da Banco de Alimentos, a pessoa física pode contribuir com doações, mesmo sem ter empresa ou algo do gênero. “Muitas Pessoas Físicas enviam cestas básicas pra cá. Existem também campanhas em empresas, onde os funcionários se mobilizam e arrecadam produtos não perecíveis”, confirma a coordenadora da ONG.
De acordo com Isabel, a sociedade mudará sua mentalidade apenas quando as escolas, que são a base de tudo, investirem em programas de conscientização. “Cada pessoa que tem esse conhecimento deve passar para os outros. Só assim a gente vai conseguir se conscientizar. A escola é um inicio forte, já faz parte da educação daquela pessoa. As faculdades também poderiam tratar dessas questões, afinal de contas os universitários têm uma força muito grande e estão abertos para o conhecimento“.

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