A experiência de Tião Nicomedes, que dormiu na cama e acordou na rua, perdendo tudo do dia pra noite é traumatizante, mas a reconstrução de seu castelo é um rico aprendizado.
O bairro do Brás, em São Paulo, é um dos mais movimentados. Ainda mais em um sábado de manhã, em que todas as lojas abrem cedo para receber compradores de todas as partes do país, que disputam o espaço das ruas com os carros e ônibus que por ali trafegam. Há barulho e gritaria por todos os lados, misturando-se com cheiros de iguarias, de procedência duvidosa, espalhadas pelas beiras das calçadas. A rua Oriente é uma das mais movimentadas. As lojas que comercializam vestuário com preços bem menores que os de shoppings atraem multidões que falam alto e pechincham cada centavo. O barulho vai diminuindo conforme nos aproximamos da rua Monsenhor de Andrade. Ao virar a esquina, parece que estamos em outra cidade, de tão silenciosa, e ao prosseguir o caminho, parece que estamos em um bairro carente, sem asfalto e com o barulho do trem da Companhia Paulista de Transportes Metropolitanos (CPTM), passando regularmente como trilha sonora.
Procuramos por nosso personagem, que já havia confirmado a entrevista por e-mail, e logo fomos levados a Sebastião Nicomedes, o Tião, por um simpático rapaz que nos contava sobre a formatura de sua prima no dia anterior e que estava sem dormir. O semblante do rapaz era de alegria, embora transparecesse o cansaço nos olhos profundos. Subimos ao primeiro andar do prédio onde funciona a casa Restaura-me, pertencente à Aliança de Misericórdia, que é uma ramificação da Renovação Carismática Católica, iniciada em 2000 pelos padres Antonelo Cadeddu e Enrico Porcu. O Restaura-me tem o intuito de devolver a dignidade às pessoas em situação de rua através de atividades diversas.
Entramos em uma sala, onde algumas pessoas manuseavam tinta, papel, latas e outros objetos descartados pela sociedade. Tião nos recebeu e pediu que aguardássemos, com uma seriedade de professor, enquanto mantinha a atenção voltada a um brinquedo que era construído por um de seus alunos. Todas as obras surgiram das mãos que víamos ao nosso redor. Mãos calejadas que todos os dias matam leões de fome, miséria e preconceito. Mãos que abatem as lágrimas que rolam quando a necessidade grita. Mãos que constroem a miniatura do Pátio do Colégio com jornais velhos.
Tião nos olhou com um largo sorriso e chamou-nos para o salão vazio à frente, com uma janela de fundo que vez ou outra mostrava o trem e seu evidente barulho, interrompendo a conversa, mas contribuindo para revelar muita coisa que era dita no silêncio.
A História de Tião
Nosso personagem viu o mundo pela primeira vez em Assis, interior de São Paulo. Precocemente, enfrentou a morte de seu pai, com 9 anos de idade e a de sua mãe, onze meses depois. Tião viveu em Assis até os 11 anos.
Quando a permanência na casa em que foi criado passou a ser insuportável, sua irmã mais velha, que é freira, levou Tião e mais dois irmãos para Sabará, em Minas Gerais. Tião nunca gostou de amarras, mesmo que invisíveis. Ser criado em meio a freiras o impedia de muitas coisas, as quais sonhava. O garoto tinha espírito livre e queria conhecer o mundo. Ao completar 17 anos, a porta do mundo abre-se à sua frente, rompendo a tutoria assinada por sua irmã.
Tião foi para a escola militar, tranquilizando sua irmã e conseguindo a permissão do governo para alçar voo. Ele não quis seguir carreira militar, apenas sair do universo onde passou a adolescência, atirando-se à primeira oportunidade. “Eu tinha acabado de deixar um quartel, praticamente, quando eu morava com as freiras, e agora que eu havia saído, iria sair mesmo”, afirma. Antes de ver o resultado das provas que o promoveria ao juramento da bandeira e três anos de reclusão, Tião fora conhecer o Brasil. O dinheiro que conseguia como saqueiro, fazendo carga e descarga de caminhão, profissão herdada da família, era o seu sustento por onde quer que fosse, em meados dos anos 80. “Meu pai fazia isso, eu fazia, todos nós éramos muito fortes. Sempre que vinha caminhão com cimento, feijão, arroz, a gente corria lá pra ver quem era que estava descarregando pra poder fazer parte da descarga. Então, ganhar dinheiro era fácil!”. Tião exerceu o ofício da família por muito tempo, até aprender profissões diferentes, em que pôde se especializar. Trabalhou com carpetes, pisos e algum tempo depois, aprendeu a trabalhar de letrista. As letras que Tião compunha não eram de músicas e poesias e sim aquelas que víamos com mais frequência na década passada em anúncios de lojas. Esta última profissão lhe proporcionou experimentar os extremos da vida em riqueza e pobreza, mas isso veremos mais adiante.
Em 1986, Tião voltou para Assis, após sua excursão pelo país, mas não se sentiu no mesmo lugar onde havia nascido e passado parte da infância. “A família não era mais a mesma coisa. Havia primos, cunhados, parentes de terceiro grau. A casa dos meus pais já não era minha e aí não deu pra ficar muito tempo lá. Foi aí que eu voltei pra São Paulo, e conheci a cidade pra valer.”
Antes desse retorno, Tião só tinha visitado São Paulo esporadicamente, sem compromisso. Foi ainda em 1986 que fincou os pés na terra da garoa. Morou em uma pensão até 1992, quando aprendeu o ofício de letrista. “No início eu ajudava a amarrar as faixas nos postes e nas lojas. Depois comecei a encher letras, contornava e preenchia. Fui pegando prática e comecei a trabalhar por conta.” Tião fez diversas faixas em lojas da rua Oriente e também da rua São Caetano, no bairro da Luz. ”Trabalhava o ano inteiro sem perceber. Eu não estava procurando outro emprego mais”.
Tião recorda que, devido à era da comunicação visual e dos webdesigners, iniciada por volta de 1996, as lojas começaram a utilizar letras adesivadas. Tudo que era feito à mão passou a ser feito pelo computador. Os profissionais que tinham o preenchimento das letras como meio de sobrevivência adequaram-se, aprendendo a manusear os novos adesivos. No início dos anos 2000, Tião diz que muitos letristas ficaram desempregados e que as ruas abrigam, até hoje, milhares de ex-letristas. O emprego que fazia pequenas fortunas no início dos anos 1990 faz a miséria de muitos hoje. Tião resistiu apesar das dificuldades e, em 2002, planejava construir sua própria oficina. ”Como eu terceirizava ou fazia bico, ganhava muito pouco. Serviços que antes me rendiam em torno de R$ 5 mil, eu estava fazendo por R$ 200, R$ 300, porque não dava para competir. A gente chegava com a maletinha de tinta, e já que o cara estava precisando, enchia de serviço, mas de pagamento nada.”
O calvário de Tião
Em 2003, Tião arriscou tudo o que tinha. Abriu sua oficina de comunicação visual e viu que as coisas pareciam estar no rumo certo para melhorar. Mergulhou em um grande oceano verde de esperança e acreditou que o novo empreendimento iria lhe devolver o patamar perdido há alguns anos. Chamou vários amigos para o novo negócio: serralheiros, vidraceiros, pedreiros e vitrinistas. Eles investiram no aprendizado das novas técnicas de arte e no aprimoramento das que já possuíam. Eis que surge o primeiro serviço. Tião já tinha o pensamento fixo: “Agora eu fico rico!”. E tinha tudo para ser mesmo. Era um cliente na rua Oriente, sua atual vizinha, que havia requerido o front light, conhecido como luminoso. Como a oficina de Tião era nova, ele não dispunha de todos os aparatos necessários para a segurança que o trabalho requeria, como andaime e cinto de segurança. Para que fosse feito rapidamente e o dono da loja não chamasse a atenção deles, resolveram chegar antes do comércio abrir.
De madrugada, Tião e os amigos chegaram ao local, embora já sentisse algo que o avisava do perigo. O serviço teve início, mas dada a sua complexidade, a loja abriu antes que ele fosse concluído, e os planos da equipe foram por água abaixo. Já tinha sido feito quase tudo, faltava apenas parafusar a placa. Tião foi incumbido da tarefa, e iria começar a parafusar pelo meio. Dois de seus amigos seguravam a escada e os outros dois seguravam a placa.
Ao olhar para a placa, o letrista se desequilibrou na precária estrutura. Sem haver tempo para pensar, Tião se viu atraído pela força da gravidade. Ao olhar para cima, viu que seus amigos, no intuito de segurá-lo, soltaram a placa que o seguia ferozmente para baixo. Enquanto caía, várias possibilidades passavam em sua mente. Tião tinha plena certeza de que morreria, sentindo o vento no corpo e a fúria da placa que o olhava de cima, mas também sabia que podia tentar sair vivo, afinal estava acostumado com quedas nessa profissão. Maquinou algumas formas de cair e já diagnosticava as possíveis consequências. “Eu tenho que cair em pé, senão eu morro, foi o que eu pensei. Se eu cair sentado, estou aleijado, se eu cair de barriga, eu morro. Se cair de cara, eu morro… De todo jeito, estou frito! Apesar da experiência que todo pintor tem em cair, sempre em pé, eu estava em outra situação. Não podia ficar em pé de uma vez, senão eu estourava o joelho e ainda a placa estouraria na minha cabeça.” Os seis metros de altura, convertidos em quatro devido à existência de um toldo no meio do caminho, pareciam infinitos, a julgar pela quantidade de pensamentos do experiente letrista. Ao encontrar o solo, Tião se jogou de lado para desviar da placa e o fervor não o fez perceber que, embora tivesse conseguido se esquivar, havia quebrado o braço esquerdo.
Um silêncio mortal tomou o lugar. Os amigos de Tião, os fregueses da loja, os curiosos da rua. Todos olhavam aquele homem caído, imóvel, sem nada fazer ou falar até que o dono da loja começou a gritar e Tião disse “me tirem daqui, estou vivo”. Quando o Resgate chegou, Tião não estava mais na frente da loja e sim na esquina, levado pelos seus amigos da onça, assim denominados por ele. Os bombeiros perguntaram a Tião o que aconteceu e ele explicou que caiu enquanto fixava a placa na loja, mas quando virou os olhos para apontar, não havia mais placa, ou sujeira. Tudo estava limpo. Mais tarde, Tião soube que, a mando do dono da loja tudo foi limpo e que seus companheiros receberam o pagamento pelo serviço, mesmo sem concluí-lo, para que o acidente se transformasse em um trágico atropelamento corriqueiro, sem comprometer o lojista. Tião tentou explicar, mas como não havia provas e ninguém falava nada, os bombeiros concluíram que se tratava de um atropelamento. Na ambulância, Tião disse-lhes que estava, de fato, colocando a placa e que havia caído, mas não sabia o que estava fazendo na esquina. Colocaram em sua ficha que se tratava de queda de andaime.
Tião foi levado do bairro do Brás a um hospital da Vila Maria, na zona norte de São Paulo. Teve seu lado esquerdo imobilizado e foi impedido de dormir, conversando com os bombeiros, pois temiam que, no caso do paciente, uma piscada fosse fatal. Após os raios-x, os médicos viram que a mão de Tião estava em formato de Z. Deram-lhe duas opções: cirurgia ou redução, que consiste em colocar a mão no lugar à força, puxando-a da forma mais primitiva possível. Como Tião não sabia o que era redução, optou pelo desconhecido e submeteu-se a uma das maiores dores de sua vida, e o pior, sem resultado. Após muitas viagens entre os raios-X e a redução, o braço de Tião foi engessado novamente e o levaram para a observação.
Hoje Tião ri, mas assume que na época não era nada engraçado. Na primeira manhã de internação, acordou e viu a enfermeira, toda de branco obviamente, em um quarto branco e chegou à conclusão de que havia morrido. Decepcionou-se ao ver que, mesmo no céu, não se livrara dos gessos e ataduras. Não pensava que seria assim. Com cautela, chamou a enfermeira, que até então seria um anjo na recepção do Paraíso. “Moça, você é um anjo? Eu estou no céu? Mas tenho que vir engessado mesmo?”. Ela disse que eles estavam no hospital e, mesmo de plantão, teve que colocá-lo em uma cadeira de rodas e levá-lo para dar uma volta e certificá-lo de que não estavam no céu.
À base de antibióticos, Tião esperou por uma cirurgia durante oito dias e entrou em jejum préoperatório no domingo, pois seria operado na segunda-feira. Com a chegada do médico na segunda, descobriram que houve um engano e a cirurgia de Tião seria na terça-feira. O médico não quis realizar a operação devido o engano e a suspensão do jejum. Quando planejava fugir do hospital, Tião teve alta médica e saiu com a metade do corpo engessado. Seu primeiro destino foi o seu salão de comunicação visual.
Ansioso para ver o lugar que seria seu refúgio após o trágico acidente que imobilizara sua principal ferramenta de trabalho, Tião foi direto. Ao empunhar o chaveiro teve a primeira surpresa, pois não conseguia abrir nada. Pediu para que os vizinhos de um ferro velho o ajudassem a arrebentar os cadeados para entrar. Estranhou aqueles olhos arregalados em sua direção, mas não deu importância. Ao adentrar o local, viu que seu sonho estava destruído. Ratos, baratas e outros animais nada hospitaleiros o receberam no salão que era um rascunho do que fora um dia. Com grandes valetas e esgoto aberto, o salão não se parecia em nada com o que Tião deixara intacto há pouco mais de uma semana. A explicação veio a bordo de uma sirene de polícia, chamada pelo arrombamento do local. De dentro do carro saltou o dono do salão que também arregalou os olhos ao ver Tião e embranqueceu feito papel. O homem dispensou a polícia, explicando que se tratava do inquilino do salão.
Tião explodiu palavras com o homem que custava acreditar no que via. Pediu explicações sobre suas coisas: por que tudo estava arrebentado? O dono se explicou, dizendo que os amigos de Tião haviam comunicado a trágica morte do letrista no acidente e que eles não tinham mais interesse no local. Por essa razão, explica-se o estado do salão, que havia sido alugado para uma oficina mecânica, e o medo do homem que pensava estar falando com uma assombração. Não havia nada a ser feito. O dono não poderia ir à delegacia, pois quem havia quebrado o contrato era ele e o dinheiro do aluguel pago antecipadamente já havia sido devolvido para os amigos. Para amenizar a culpa, o dono do salão negociou com os novos inquilinos para que Tião passasse ao menos duas noites lá, até que achasse outro lugar.
Tião dormiu acompanhado das baratas e ratos que faziam questão de lembrá-lo de que estavam lá. Os antibióticos permaneciam em sua rotina e a troca de roupas era precária, apenas com o que veio do hospital. Quando saiu de lá, a fome começou a acompanhar Tião, caminhando sorrateiramente ao seu lado. Do salão, o ex-letrista foi direto para o Brás, bairro onde tudo aconteceu, e encontrou uma conhecida que o ajudou a ligar para Sabará, cidade de Minas Gerais em que foi criado com a irmã, que desde 1988 havia se mudado para a África. As freiras que ainda lembravam-se do menino Tião compadeceram-se da situação e depositaram R$ 60 em sua conta para ajudá-lo. Com esse dinheiro, Tião pagou dez diárias de uma pensão que o acolheu.
O primeiro encontro com a fome
Passados esses dez dias, Tião não tinha mais dinheiro e acabou por morar na rua, sem a mínima ideia do que encontraria. “Pensei automaticamente: eu vou sair, consigo um emprego, volto pra pagar as diárias e continuo. Eu nem sabia que existiam albergues”. Por causa do gesso, todos os que sempre ajudaram Tião não queriam saber de empregá-lo, nem olhavam para ele. As lojas que haviam contratado os serviços de Tião, dando valores de sinal, tinham sido atendidas pelos companheiros de Tião, que receberam o valor final após o serviço terminado. Tião não tinha mais dívidas, mas não teria mais emprego. O ex-letrista lembra-se da sua primeira noite na rua, quando dormiu próximo ao mercado municipal, procurando emprego no antigo ofício de descarregar caminhões e também para comer algumas frutas, pois a única coisa que seu estômago via há dias era o remédio. “Parecia um robô, nem conseguia sair do lugar, pois travava o estômago todinho, cheio de antibióticos”.
Cansado de ser rejeitado por causa do braço inválido, Tião procurou um hospital no Pari, na zona norte de São Paulo, e pediu para o médico, Samuel, que retirasse o gesso. Após os raios-X, o doutor negou-se a atender ao pedido de Tião e não entendia como ele havia saído do hospital sem uma operação. O médico criticou também a nova condição de vida de Tião, que agora vivia nas ruas, sem o mínimo de higiene. Compadecido da situação, Samuel comprometeu-se a conseguir uma vaga no hospital para que Tião operasse o braço. O homem saiu de lá com a esperança renovada, pois acreditava que após a cirurgia conseguiria recomeçar sua vida e deixar os braços frios das ruas e o olhar indiscreto da lua sobre seu sono.
Tião estava se acostumando à vida nas ruas. Aprendeu onde conseguir comida quando tinha fome e, quando não as tinha, partia para a comida jogada no lixo. “É engraçado que na rua a gente passa mais sede do que fome. A gente pede água nos bares, mas eles não dão. Têm alguns que distribuem sopa à noite e nos dão garrafas de água. A fome existe, porque de dia ninguém arrisca distribuir comida, exceto as casas de convivência e os albergues, e demora até que as pessoas descubram esses lugares, que não teriam estrutura para receber tanta gente. Então, geralmente na rua, a gente come uma vez por dia que é à noite, porque era e continua sendo proibido distribuir comida na rua. É um grande equívoco julgar que as pessoas preferem ficar na rua, pois na rua tem comida. É muito relativo isso. Se ele fica onde sabe que vai ter comida, não vai morrer de fome. É um desequilíbrio estranho calcular por esse lado, pois se parar de ter doação, ele vai ficar lá sem comida e vai morrer fácil. Então as pessoas que distribuem, já vão meio com medo, preocupadas. Por isso, a gente aprende a se virar, perde o medo de comer no lixo. Normalmente encaramos isso e vamos nos virando desse jeito. Ainda temos que tomar cuidado para ver de quem aceitamos a doação. Tem muita gente que doa comida com pó de vidro.”
Já havia dois meses que Tião estava nas ruas quando surgiu a vaga para a operação. Ao vê-lo novamente, o médico impôs uma condição. Disse que se Tião não saísse das ruas, não o operaria, pois devido à situação poderia até perder o braço. Doutor Samuel é uma das pessoas que Tião guarda na memória com um visível carinho, pois foi quem lhe devolveu a dignidade ao chamá-lo pelo nome. Tião já havia se esquecido que fora batizado pelos pais como Sebastião e não como Barba, como vinha sendo chamado há algum tempo. Ouvir seu nome saindo por entre os lábios de uma pessoa importante, como um médico, fazia-o sentir que continuava vivo apesar de tudo o que tinha passado.
A reconstrução dos sonhos de Tião
Para cumprir a promessa, Tião procurou onde morar e acabou conhecendo o albergue Arsenal da Esperança. Antes, nem sabia que existiam albergues. Sua primeira morada era a mesma de mais quase 1150 pessoas. Analisando o seu dia a dia, e o de seus companheiros, Tião inspirou-se e ousou escrever sua primeira peça teatral chamada Bonifácio Preguiça. O texto expunha as diversas facetas das pessoas de rua. “Montei um grupo de teatro lá, porque a peça tinha 12 personagens. Aí eu reuni 12 caras que moravam lá dentro e cada um fazia um personagem. A peça fez um grande sucesso.”
O grupo de teatro de Tião foi descoberto pela faculdade Anhembi Morumbi, que ficava próxima ao albergue e o incentivava culturalmente. A peça foi muito bem aceita e logo o grupo do albergue estava integrando as aulas de teatro da faculdade. Tião chegou a escrever um texto que foi adaptado pelo grupo profissional da faculdade e levado ao circuito paulistano. A montagem do Diário de um Carroceiro ficou em cartaz nos Teatros Fábrica e Sérgio Cardoso.
Bonifácio Preguiça continuou encantando os moradores do albergue Arsenal da Esperança e diversos outros, que chegaram a ser moradas de Tião posteriormente, por um bom tempo, até que o prazo de moradia dos novos atores se encerrou. Cada um foi para um canto e Bonifácio e seus amigos permaneceram quietos, imóveis, dormindo apenas na lembrança, calados pelo tempo e pela distância. Até hoje, Tião lembra-se com saudades de seu primeiro personagem, que acabou caracterizando-o por um tempo. Ninguém o chamava de outra coisa senão Bonifácio. A montagem fez tanto sucesso que chegou a ser estudada por uma emissora de televisão para ser transformada em seriado. Nunca mais se falou no assunto. Atualmente, Tião dispõem do Bolsa Aluguel, programa do Governo Federal destinado à moradia popular. Mora em uma pensão e está à procura de uma quitinete para alugar.
Tião está na casa Restaura-me há dois meses, no intuito de dividir suas experiências e engrandecer-se como pessoa. “Eu era muito cobrado. Sempre me diziam ‘você escreve, faz teatro, faz isso, faz aquilo’… Mas todo serviço que me ofereciam era ruim, eu tinha que ser monitor. Imagina… ser monitor? O cara chega bêbado e eu ter que colocar ele pra fora, sendo que eu o via como um amigo. Sempre achei que eles é que precisavam mais. Então, pra mim, não tinha trabalho. Até que surgiu a proposta de um amigo meu que estava assumindo a coordenação e me chamou pra fazer alguma atividade com o pessoal, pois antes eles só comiam e dormiam aqui.” Tião começou a ministrar oficinas de artesanato com os recursos de que dispunha. Hoje, organiza saraus para estimular a veia artística de seus alunos e está preparando uma encenação teatral. “É gratificante pra eles, que agora fazem alguma coisa, e pra mim, pois estou fazendo uma coisa que eu não me sinto mal, que eu gosto. Convidaram a gente para expor as obras nas feiras da Sé, do Anhangabaú. Começaram a surgir novas oportunidades”.
Tião diz que mantém os laços com a família, e que alguns até tentaram estreitar essa amizade com a ilusão de ter alguém famoso e supostamente rico como parente, devido à notoriedade recente de Bonifácio Preguiça na mídia. Desses pensamentos Tião ri, mas não se enraivece. Lamenta por não poder vê-los mais, agora que todos estão no litoral norte de São Paulo, mas pretende juntar dinheiro para visitá-los com mais frequência.”Nem me dava conta que família era importante mais, nem ligava pra parente. Como todos da rua, eu queria que todos se explodissem.”
A fome, por Tião Nicomedes
Os olhos de Tião focalizam o horizonte quando se lembra da fome passada nos tempos em que morou nas ruas. O barulho do trem passa a ser elemento de fundo em sua fala mansa, lembrando aos poucos a real necessidade que a estadia ao ar livre proporcionava. “Uma fome passada na rua, também, além de comida, é vontade de fazer alguma coisa para mudar. Aí só a comida não resolve. Nós comemos, mas não vemos o efeito daquilo. É como se comesse e o corpo não reagisse à comida. Quem dorme na calçada mesmo sente, não anda, não consegue se locomover muito. Eu sei, pois passei muito disso. É um desespero que bate principalmente em sábados, domingos e feriados em que fecha tudo e todo mundo some. A gente falava que as pessoas costumam ter medo de drogados e bêbados. É mais fácil ter medo de alguém com fome, que não pensa e age por instinto. É uma fome estranha, é uma fome de oportunidades mesmo.”
Tião acredita que a fome possa ser solucionada, mas ressalta que moradia também é essencial. “Tem a favela do Moinho, embaixo do viaduto da avenida Rudge, aqui no centro de São Paulo, onde as pessoas passam mais fome em casa do que na rua. Às vezes não tem gás, não tem o que comer e não tem água, pois nessa favela são duas torneiras para todo mundo. Então eles enchem os tambores de água pra tomar banho, cozinhar e beber. Tanto a água não fica boa para se utilizar, quanto eles não têm disposição pra ficar enchendo aquilo toda hora. Por isso eles não têm tanta comida assim. As mesmas pessoas que distribuem comida na rua distribuem lá dentro pra tentar amenizar. E eles não têm o Bolsa Família. Hoje a maioria que precisa não tem.” Questionado sobre a solução para a fome, Tião é enfático. “O governo deveria proporcionar renda suficiente para o cidadão poder manter moradia e alimentação. Deveria existir pensão social. Encher a cidade de pensões e incentivar os donos a alugar as vagas para o pessoal da rua por um preço acessível. As pessoas detestam albergues, mas de pensão ninguém tem raiva.”, finaliza.
Paulo Gratão
Reportagem produzida para a revista Mente Aberta (2009)
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