Muito além da fome...

As pessoas ainda morrem de fome no Brasil? Com tantos recursos, programas sociais, e desenvolvimento educacional constante é difícil acreditar que seres humanos ainda sofram de um mal tão primitivo. As estatísticas mostram que as pessoas têm tido mais acesso à alimentação diária, porém os números ainda são alarmantes. A erradicação da fome no Brasil é um sonho próximo, entretanto distancia-se cada vez mais de tornar-se realidade. Para explicar essa complicada contradição, basta apegar-se ao fato de que a fome é apenas um fator (o mais grave, por sinal) de uma cadeia de indicadores que atendem pelo nome de Insegurança Alimentar e Nutricional. A professora da Universidade Católica de Brasília, e pesquisadora de trabalhos elaborados para o Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), Muriel Gubert, confirma a tese de que ainda existem pessoas que morrem de fome no Brasil: “Sim, claro, e não são poucas pessoas. Existe uma parcela enorme de miseráveis no Brasil, não só aquela fome refletida nas crianças africanas. O Brasil possui características de fome diferenciadas. Os assalariados que, pela falta do dinheiro no final do mês ficam dois ou três dias sem comer. Existem pessoas que camuflam a fome, criando estratégias”. A repórter especial da revista Época (Editora Globo), Eliane Brum, autora de diversas reportagens que retratam, com um olhar aguçado, diversas situações de miséria e desnutrição, faz coro à afirmação de Muriel. A jornalista afirma que há muita gente que passa fome no Brasil, “Com certeza muita gente morre lentamente de fome, de várias maneiras, a principal é a subnutrição.”, diz.
O estudo que foi sancionado como lei em 2006 (11.346/06 – Lei da Segurança Alimentar e Nutricional), pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, provou através de vários indicadores, que o brasileiro não é vulnerável a um distúrbio alimentar apenas por não poder comprar alimentos. A insegurança alimentar rege que, além de uma quantidade razoável de alimentos, o indivíduo deve prezar pela qualidade do que é ingerido, Muriel confirma essa afirmação: “Antes era só questão quantitativa, hoje se preza o alimento de qualidade. A lei da segurança alimentar estabelece, também, que a aquisição do alimento não deve comprometer nenhuma outra necessidade do indivíduo, bem como aluguel e contas de consumo”. Em seus estudos, a professora enfatiza e ilustra através de gráficos, a situação da insegurança que rege o cardápio e o cotidiano do brasileiro. A alimentação desregulada é responsável por dois extremos de enfermidades que assolam o mundo: a desnutrição e a obesidade (leia reportagem na pág…). Sobre este assunto, Eliane ressalta que a desnutrição é uma das consequências mais alarmantes da fome e talvez, uma das maiores razões de morte.
A principal diferença entre insegurança alimentar e fome, segundo Muriel, é que a fome lida com a quantidade de alimentos ingeridos pelo indivíduo, e o primeiro preza por tudo isso e ainda pela qualidade do alimento, além de assegurar que a aquisição do alimento não se tornará uma opção para o cidadão e sim uma obrigação. Os principais vilões da segurança alimentar e nutricional são as propagandas, que induzem o consumo exagerado de alimentos inadequados para o desenvolvimento saudável e a “prática capitalista”, aponta Muriel.
Segundo estudos realizados pela Universidade de Campinas (Unicamp) e UnB, existem três dimensões de insegurança alimentar e nutricional: Leve (fome percebida); Moderada (adultos restringem o consumo); Grave (crianças restringem o consumo). Esses indicadores são medidos com base em diversos aspectos que variam desde o medo psicológico até a fome em crianças, não estando vinculados à desnutrição.
Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) apontam que, dos quase 52 milhões de domicílios particulares brasileiros, existe segurança alimentar em 65,2%. O principal foco da Insegurança Alimentar está no Nordeste, com 1,6 milhão de domicílios em condições graves. Para chegar a esses resultados, o Ministério do Desenvolvimento e combate à fome elaborou um questionário denominado de Escala Brasileira de Segurança Alimentar (EBIA), que contém perguntas sobre a alimentação diária da família. Das 15 questões, nove são destinadas a pessoas com mais de 18 anos e as outras seis à dieta alimentar das crianças e dos adolescentes (veja Boxe).
Um país de resultados
Muriel acredita que programas sociais como o Fome Zero são mal interpretados pela população, que tende a medir a qualidade do serviço pelos resultados e não pelos meios. Segundo a professora, o programa do governo foi desenvolvido visando os dois polos da fome: solução a longo prazo e os emergenciais. Para os casos de longo prazo, são investidas altas quantias em questões educacionais e trabalhistas, sendo possível obter resultado em, no mínimo, 10 ou quinze anos. Já os planos emergenciais sanam parte dos problemas, porém são vistos como assistencialismo e forma de manter o cidadão na situação atual. A professora, inclusive, mostra-se otimista com relação aos índices futuros ligados diretamente à condição de pobreza, embora admita que a atual crise mundial possa ter força suficiente para mudar o curso do rio que segue confiante.
Mais do que qualquer outra segurança que preocupe os governantes, nenhuma tem se destacado mais do que a segurança alimentar e nutricional. Como diz o velho ditado, “saco vazio não para em pé”, mas “saco preenchido com qualquer coisa” também não para.
Kilma Mendes e Paulo Gratão

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