Quando foi a última vez que você sonhou?

Outro dia, durante um rápido café em uma lanchonete no centro de São Paulo, fui abordado por uma jovem senhora que aparentava ter bem mais idade do que tinha realmente. Mecanicamente, nem me prestei a olhar o produto que ela oferecia e fiz uma rude negativa. Entretanto, estava ao celular e lembro-me de ter feito uma pergunta ao meu receptor que cativou a atenção da vendedora invisível, fazendo-a iniciar um diálogo inesperado comigo. Minha pergunta foi algo sobre “quando foi a última vez que você sonhou?”, a senhora esperou que eu desligasse o telefone e começou a falar:
“A última vez em que me lembro, estava em um país distante, cheio de pessoas felizes e generosas, que não tinham medo de compartilhar o pouco que tinham. Ninguém tinha motivo pra reclamar, afinal comíamos, trabalhávamos e dormíamos uniformemente. Era um país sem igual: vivíamos em democracia e igualdade.
Essa última vez já faz tanto tempo. De lá pra cá não tive mais sonhos assim... Se eu não me engano, a última noite que sonhei foi há uns três anos, nos meus primeiros dias de viuvez. Depois que me mudei pra esse barraco com meus filhos, passei a eles a oportunidade de sonhar. Seria egoísmo meu retirar essa parte tão valiosa da infância, não é? Enquanto eles sonham, eu durmo à prestação. Essa noite, em especial, foi muito difícil, a fome incomodava muito. Ainda bem que as crianças comem na escola, por essa razão nunca faltam e vão até doentes.
Ontem recebi um bilhete da professora do meu menino mais velho, mas como sei ler muito pouco não consegui distinguir algumas palavras. Amanhã vou lá ver o que ela quer. Tenho que me lembrar de passar na feira depois... Como se eu fosse esquecer. Tem um homem muito bom que sempre me reserva uma caixa com algumas frutas. Eu as dou às crianças também.
Quando eu era moça, reclamava muito de cólicas e essas dores que as mulheres se queixam, mas isso até eu conhecer a dor da fome. Nunca vi nada igual. A maior fome que havia sentido aos 15 anos era de uma refeição à outra, mas essa fome de comer pedra é a primeira. Meu recorde será batido essa semana: quatro dias sem comer um pão inteiro.
Ah que saudade do meu tempo de solteira. Morava lá em Minas, com meus pais, até conhecer o Joaquim. Meu pai sempre foi contra nosso casamento, pois eu era muito nova e ele era muito doente. Mesmo assim me casei. Chegamos a São Paulo há uns 4 anos, quando eu tinha 25 e já tinha um filho de 5 anos. Dois anos e mais dois filhos depois, Joaquim morreu de câncer e me deixou sem lugar pra morar com as crianças. Voltar pra casa? Eu adoraria, mas meus pais preferem me ver morta a com eles de novo, por causa do Joaquim.
Nunca vivi como uma princesa. Minha família era muito pobre também e tive que trabalhar desde cedo, sem chances e poder estudar. Essa talvez tenha sido a razão de querer sair de casa, esperança de vida nova. Perspectiva de um futuro rico.
Hoje vivo com o que Deus me dá e sustento meus filhos conforme a sua bondade. Graças a ele consigo manter meus filhos. Estão magrinhos, é verdade, mas estão fortes e bem. Eu como conforme sobra. Não penso em roubar, nem em tirar dos meus filhos para mim. Já errei demais nessa vida e se alguém tem que pagar por erros, essa sou eu.
Agora, se me permite, vou continuar a vender minhas flores e tentar chegar em casa com algum dinheiro antes das crianças.”
Comprei todas as flores que tinham em seu cesto.

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